Carta psicografada não pode ser admitida como prova no processo judicial por se tratar de meio desprovido de mínima idoneidade para corroborar fatos.
A conclusão é da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que deu provimento ao recurso em Habeas Corpus ajuizado pela defesa de um homem acusado de homicídio.
Cartas psicografadas são textos escritos por médiuns. Segundo o espiritismo kardecista e religiões de matriz africana, entre outras, os médiuns têm a capacidade de contatar pessoas que já morreram e transmitir mensagens delas para os vivos.
Esse tipo de documento já foi utilizado em processos criminais, inclusive no caso da boate Kiss. O uso de cartas psicografadas nas ações divide especialistas, como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico.
É a primeira vez que o STJ tem a oportunidade de avaliar seu cabimento. A posição unânime do colegiado é de que tais cartas são incabíveis como prova.
Carta psicografada da vítima
No caso concreto, a carta psicografada foi usada pela acusação. A autoridade policial colheu o depoimento de uma testemunha que teria atuado como médium e psicografado informações transmitidas pela vítima fatal.
Na sequência, a polícia coletou material caligráfico fornecido pela mencionada testemunha, colheu o depoimento da mãe dela e juntou aos autos os manuscritos supostamente psicografados.
Como o réu foi pronunciado, esse material seria apresentado ao corpo de jurados, a quem cabe decidir sobre a autoria do crime contra a vida inclusive sem qualquer necessidade de justificar as próprias conclusões.
Com o provimento do recurso, o juiz da causa deverá desentranhar (retirar) dos autos a carta psicografada, além de riscar dos depoimentos todas as referências eventualmente feitas ao conteúdo mediúnico.
Essa é a posição do relator, ministro Rogerio Schietti, acompanhado pelos ministros Og Fernandes e Antonio Saldanha Palheiro.
Os ministros Carlos Brandão e Sebastião Reis Júnior votaram para ir além e anular a decisão de pronúncia, determinando que o juiz profira novo julgamento, já desconsiderando o material psicografado.
Prova inadmissível
Em seu voto, o ministro Schietti destacou que a admissibilidade da prova no processo penal está condicionada ao fato de ela não ser ilegal e ser epistemicamente confiável — ou seja, ter um mínimo potencial para demonstrar o fato alegado que se vise comprovar.
Essas condições não são cumpridas pelas cartas psicografadas porque, apesar dos esforços destinados ao tema, não há ainda evidência científica, sólida e confiável de comprovação da vida após a morte ou de comunicação com pessoas falecidas.
Assim, cartas psicografadas representam atos de fé, totalmente opostos aos atos de prova, os quais visam a demonstração racional e objetivo dos fatos que são alegados no processo.
“A carta psicografada não pode ser admitida como prova no processo judicial, por se tratar de meio desprovido de mínima idoneidade epistêmica para corroboração racional de enunciados fáticos”, resumiu o relator.
Debates do além
Com essas características, documentos produzidos por médiuns se tornam impossíveis de fazer sindicância. O ministro Schietti levantou a hipótese nada absurda de um documento desse ser contraditado pela parte contrária com outra carta psicografada.
“Ficaríamos discutindo coisas do além que, em princípio, teriam sido comunicadas ao nosso mundo terreno. É algo que escapa da racionalidade. Hoje, toda a tendência do Direito probatório tem sido de conferir o máximo de racionalidade a qualquer meio de prova.”
Ao acompanhar o relator, o ministro Antonio Saldanha Palheiro indagou como seria possível validar uma prova dessa. “Eu poderia contrapor com uma previsão do tarot? Ou com qualquer desses mecanismos usados desde a idade antiga para identificar fatos que não são palpáveis?”.
Esse ponto se torna sensível em relação aos crimes contra a vida porque o julgamento se dá por um corpo de jurados, cidadãos comuns selecionados para decidir sobre autoridade e materialidade do crime, sem necessidade de justificar a posição adotada.
Em um processo julgado por um juiz togado, ele tem o dever de motivação das decisões tomadas, o que faz com que o controle sobre a prova admitida e produzida seja amplo e absolutamente sindicável.
No caso do júri não é assim. Sem a previsão de motivação decisória, uma das formas de garantir minimamente a racionalidade do julgamento é controlar a racionalidade das provas apresentadas aos jurados, conforme explicou o relator.
“Por isso, nos processos submetidos ao júri, é de suma importância que presidente da sessão faça uma filtragem cuidadosa e criteriosa das provas a fim de desentranhar provas logicamente irrelevantes ou epistemicamente inidôneas que possam induzir jurados a concussões irracionais e potencialmente errôneas.”
RHC 167.478